Exposição fotográfi ca “Caiçaras do Toque Toque Pequeno”

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No final dos anos 1960, e ainda ao longo dos anos 1970, a organização social e econômica de Toque Toque Pequeno, Costa Sul de São Sebastião, estava estruturada nos territórios da praia e do sertão que beira o bioma Mata Atlântica. Na praia, teciam-se as relações sociais, as propriedades não eram cercadas e as pessoas circulavam livremente por todo o território, tão diferente dos dias de hoje. No sertão, fi cavam as roças, bananais e regiões especiais da fl oresta para coleta de madeira, especiarias nativas e caça – era local de trabalho e nunca de moradia ou comércio. Depois de colhidos no sertão, os produtos eram transportados até a praia para consumo das famílias ou embarcados para Santos e São Sebastião.

Este dia-a-dia e seus protagonistas está retratado em 120 fotos que compõem a exposição “Caiçaras do Toque Toque Pequeno” e aberta ao público dia 15 de março, próximo sábado, na escola municipal Prof. João Gabriel de Sant’Ana, das 8h às 20h, com entrada franca.

A exposição representa um importante resgate histórico, minuciosamente preparado pelo autor das fotos, Paulo Noffs, “amigo dos caiçaras desde 1971”, como ele gosta de dizer. As fotos foram tiradas com negativos e muitos estavam bastante danifi cados pelos mais de 50 anos que se passaram. Foram seis meses de dedicação para estar tudo pronto e ser trazido de volta ao Toque Toque Pequeno.

“O trabalho começou em agosto passado, separando o material, escaneando em alta resolução e restaurando uma a uma, para obter um arquivo digital de qualidade”, explica Paulo. “Os vivos e os mortos eram e são meus amigos, amigos muito especiais, merecedores de todo esse trabalho.” Isso ganha ainda mais destaque pelo profundo conhecimento e convivência que Noffs teve com os caiçaras desde aquela época, tanto que sua dissertação de mestrado foi exatamente sobre Toque Toque Pequeno, seguido do doutorado em Geografi a Humana, pela USP.

A exposição “Caiçaras do Toque Toque Pequeno” é a primeira grande realização da nova gestão da SAPEQUE [Associação Amigos de Toque Toque Pequeno], com co-patrocínio da FUNDASS.

Serviço:

Exposição fotográfi ca “Caiçaras do Toque Toque Pequeno”, de Paulo Noffs
8h às 18h
Rua Yojiro Takaoka, 428

TOQUE TOQUE PEQUENO

Antigamente, até meados dos anos 1960, não 􀆟nha estrada para ir ao Toque Toque Pequeno, só de barco ou a pé. Depois veio a estrada, que era de terra, ia de São Sebastião para Bertioga. De início, era tão precária, que não mudou muita coisa.

Tinha a praia e o sertão. A praia era onde as pessoas moravam, lugar das casas, da venda, da igreja, da escola e dos ranchos dos pescadores. Não tinha ruas, as pessoas andavam por caminhos para irem de uma casa a outra, para a venda, para a fonte (lugar na “cachoeira” de se pegar a água para beber, de lavar a roupa e a louça de tomar banho) ou para onde quer que fossem. Os terrenos das casas não eram cercados e as pessoas circulavam livremente por todo o Toque Toque Pequeno. Tão diferente dos dias de hoje!

O sertão era o lugar dos bananais, das roças, da floresta. Território do trabalho, da caça, do corte da madeira, da lenha, do pau‐a‐pique. Era a porta da floresta, com a qual se confundia. Conhecer o mato era tão necessário quanto conhecer o mar. Cada um desses lugares tinha a sua própria gramá􀆟ca que os caiçaras aprendiam desde criança.

Tudo o que eu sei sobre esses tempos passados não li em nenhum livro, não aprendi na faculdade, me foi contado pelos próprios caiçaras, pelos antigos, como eles se referem às pessoas mais velhas. Joaquim Mamede, pai de Flávio, Joãozinho, Joaquinzinho… conta que a sua casa, no Canto Fundo da praia, foi construída por escravizados e que no tempo da escravidão plantava‐se algodão no Toque Toque. Conta ainda que quando era criança, lá pelos anos 1920, talvez 1930, tinha duas propriedade, duas grandes fazendas que se destacavam. A do seu pai, João Carlos, e a de João Marcelino de Ma􀆩os, que era pai do Leôncio, Silvestre, Francisco…

Na fazenda de João Carlos 􀆟nha um engenho. A pinga produzida era transportada para Santos pela Sereia, uma canoa de voga, que levava até 12 pipas de 500 litros cada. A cana para fazer a pinga vinha da sua própria fazenda e das de outros moradores. Tinha plantação de cana por todo o Toque Toque Pequeno. A Sereia navegava com 4 remadores, 1 mestre e, além da carga, levava 2 ou 3 passageiros. João Marcelino também 􀆟nha uma canoa de voga, mas bem menor que a Sereia, conseguia transportar até 3 pipas. Na sua fazenda plantava‐se banana, abacate, laranja da china e serra d’água, mexerica, mandioca (para fazer farinha) e feijão, que a canoa também levava para Santos. De Santos, as canoas voltavam com mercadorias para a venda: farinha, feijão, açúcar, bebidas, sal, querosene, prego e outras miudezas.

O engenho funcionou até 1930 mais ou menos. Seu fechamento coincidiu com a chegada dos barcos‐a‐motor, que substituíram as canoas de voga nas viagens para Santos. Acabava o tempo da cana e começava o da banana. Agora eram os bananais que se viam pelos morros do Toque Toque.

Joaquim Mamede conta que, por volta de 1945, foi instalado o primeiro cerco no Toque Toque Pequeno. Ranufo Santana em parceria com um japonês (de quem ele não lembrava o nome), aproveitando as panagens de outras redes, juntaram tudo para improvisar esse primeiro cerco. Não demorou muito para o cerco flutuante se consolidar como a principal atividade pesqueira do lugar. Esse foi o Toque Toque que conheci no final dos anos 1960, início de 70: estrada de terra, os bananais nos morros, o cerco flutuante e as canoas na praia. Sempre 􀆟nha uma canoa na água, um caiçara remando e alguém remendando um
tresmalho ou uma rede do cerco.

A estrada de terra meio que que delimitou os territórios. Pra cima da estrada era o sertão e pra baixo a praia. Aí veio o Takaoka, comprou tudo, derrubou tudo, construiu outro Toque Toque. Aquele que eu conheci, deixou de existir. Claro, não foi só por causa do Takaoka, tudo isso aconteceria de qualquer jeito. Ou não. Poderia acontecer de outro jeito, não precisava ser assim, eu compro a sua terra, pouco me importa onde você vai morar! E essa casa, tem importância histórica, valor arquitetônico? Derruba! E o que vai acontecer com centenas de trabalhadores que eu trouxe para construir os condomínios? Eles vão morar no
morro, junto com os caiçaras? Que seja! O que me importa são os lotes dos condomínios. E assim, o sertão virou morro, deixou de ser o lugar das lavouras, da coleta, da caça, para se encher de casas, submoradias e pequenos comércios, formando aglomerações. Pra baixo da estrada é a praia, lugar do turismo e de turistas, também tudo aglomerado, só que com gente mais rica.

Mas não é esse o Toque Toque que eu quero mostrar e sim, o de outro tempo, o da praia e o do sertão, destruídos pelo turismo descontrolado.

Sempre gostei muito de fotografia. Quando cheguei no Toque Toque, andava pra cima e pra baixo com uma câmera muito simples, uma Canon Canonet (que nem era minha, era do meu irmão) de lente fixa e sem foco pela objetiva, fotografando as pessoas em preto e branco, raramente com eslaides, tudo com filme rebobinado ou vencido. Era tudo muito caro e inacessível. Outra época, outro século. Ser fotografado, ter uma foto sua, era coisa rara para o caiçara. Assim, todo mundo quando me via com a máquina, pedia para ser fotografado, “sair na foto”, e assim fui fotografando mais pessoas, mais coisas. Tudo sem pretensão alguma. Ampliava as fotos num ampliador caseiro mais simples ainda e dava de
presente para os “fotografados”. Talvez com muita sorte algumas dessas fotos ainda existam na casa de alguém.

É isso que pretendo com essa exposição. Ao resgatar esse material, quero mostrar os caiçaras do tempo da roça e da pesca. Pode ser que em alguma dessas fotos se deixem ver as casas onde eles moravam, como eram os seus quintais. Também quero mostrar a praia, não a do turismo, mas a praia do tempo do jundu, das canoas, das redes do cerco, da pesca, quando os caiçaras eram senhores do seu espaço.

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